"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



22/01/2009

Tão fácil te querer 2009

Quero um novo Ano Novo, e estou indo buscá-lo!!!
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A minha entrada em 2009, em alguns aspectos, deixou a desejar, e nos primeiros dias de janeiro encontrava-me exausta, não me sentindo preparada para o início de um ano que promete ser muito iluminado, pois é regido pelo Sol... Então eu lembrei que os povos ancestrais decretavam o final do Ano Velho, e faziam um ritual de Ano Novo, sempre que sentiam que era necessária a renovação do Tempo para que o fluxo criativo e saudável da vida pudesse ser restaurado.
Além disso, lembrei também que existem várias entradas para um Novo Ano: o ano novo astrológico começa em março, com a entrada no signo de Áries, e no horóscopo chinês, em 2009 o Ano Novo começará às 0hs do dia 26/1...
E foi o que decidir fazer: estou de saída para a minha comemoração particular de Feliz Ano Bom (numa praia muito especial e mágica, e irei comemorar a entrada do Ano Novo chinês lá! Sei que estamos no Ocidente, mas... o Oriente tem nos trazido muitas contribuições, como a Yoga por ex... e por que não abraçar essa também, diante da necessidade de se dar um novo ponto de partida?). Mas nem por isso ela será menos especial e auspiciosa que qualquer outra comemoração que tenha sido feita nessa virada de 2008 para 2009... E já que numerologicamente 2009 totaliza 2 (2+9=11, e 1+1=2), por que não comemorar a sua entrada 2 vezes?!


Pesquisando sobre os aspectos simbólicos que circundam o ano de 2009, na numerologia (consultei o site do Gilson, que cria mantras muito interessantes), na astrologia e na mitologia dos Orixás, preparei a minha mensagem de boas entradas para os meus amigos e contatos, estendendo-a a todos que entrarem aqui, lembrando-lhes de que sempre podemos nos dar um novo Ano Novo, e lembrando-lhes também da magia de tudo o que é novo, aliando esses "lembretes" ao que Rita Lee expressou em uma de suas frases: "nunca é tarde para se ter uma infância feliz!" (rs)
Que 2009 entre em sua vida com a leveza com que uma criança lança suas bolhas de sabão ao Céu, cada uma delas abrigando um sonho de felicidade... com a sabedoria com que mãos agricultoras lançam suas sementes à Terra, cada uma delas veiculando o poder de criar e alimentar a vida... com a paixão com que amantes se fundem em sua celebração do Amor, unindo Terra e Céu numa coniunctio que banha a realidade com todas as cores do Arco-íris, fecundando desejos que se transformam em caminhos de auto-realização!

Em 2009, lembre-se que:
Do lado de cá fica o lado de lá
(use essa frase como um mantra para conquistar o que parece inatingível, mentalizando o que quer trazer da dimensão dos sonhos para a sua realidade)

Germine os seus sonhos no vaso sagrado do seu coração, regue-os com a água que emana de todas as formas de amor, encontre um lugar na sua vida para que essas sementes criativas possam fazer parte da sua realidade, florescendo em horizontes que se descortinarão em doces e prósperos amanhãs, transmutados, como que por encanto, em "hojes repletos de flores"!!!

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"Todas as preces pedem amor, não importa o que pareçam estar pedindo. A cura é amor, um desejo profundo é amor, a atenção de Deus é amor...
Os desejos tornam-se realidade quando são abrigados silenciosamente no coração.
Não proclame os seus sonhos para o mundo - sussurre-os para o amor."

(Deepak Chopra)

DE-CORAÇÃO... ou: as mudanças necessárias e os rituais de Ano Novo




"Esse é o lugar onde você poderá vivenciar e trazer à luz aquilo que você é e aquilo que poderá ser. Este é um lugar de incubação criativa. A princípio, você até pode achar que nada acontece. Mas se você tem um espaço sagrado e o utiliza, por fim alguma coisa acontecerá."
(J. Campbell)
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Na virada de 2007 para 2008 eu decidi mudar de casa. Eu morava num lugar bastante acolhedor e agradável, em que eu me permiti, durante os 10 anos em que morei lá, pintar eu mesma as paredes utilizando diversas cores, texturas e técnicas. Cheguei até a fazer desenhos com meus dedos numa parede coberta com massa corrida (enquanto ela estava ainda úmida), e a cobrir uma das paredes do corredor com chita! O meu toque pessoal estava presente em cada canto, e por opção eu não tinha na casa nenhum móvel que eu mesma não pudesse deslocar de um lugar para outro. E quando enfim cheguei a uma arrumação e distribuição de cores que me satisfizeram plenamente, tive a consciência de que era hora de mudar de casa...
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Pois é isso mesmo, por mais paradoxal que nos pareça, quando uma coisa está pronta, está morta, e é como o fruto colhido da Árvore da Vida quando concluímos algum ciclo: o saboreamos, extraindo dele o aprendizado e a energia necessária para darmos o próximo passo em direção ao nosso crescimento, e então encontramos dentro dele sementes, que representam projetos e possibilidades que podem e devem ser trazidas à realidade e traduzidas em novas configurações. Morre o fruto, que renasce através de suas sementes. E assim a nossa vida caminha, fresca e cheia de vigor, renovando-se sempre que abrimos espaço ao novo que pede passagem para que ela se recrie, pois o que está vivo está em movimento, em processo de mudança contínua, como um rio que não pode deter o seu curso.
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Então eu me dei conta de que o próximo passo consistia em escolher uma nova morada onde plantar os meus sonhos que, como essas sementes, estavam ali, bem na palma da minha mão, enchendo o meu coração de esperança e de uma nova luz que insistia em se fazer notar e em se presentificar com sua manifestação... Eu precisava agora trazer a minha nova face à tona, e de uma casa que espelhasse o meu novo momento de vida, em que o sol entrasse por todas as janelas e banhasse generosamente todos os cômodos... e que não tivesse muitas paredes! Hoje escrevo a vocês dessa nova casa (inacabada, claro) em que vou tecendo em cada detalhe uma nova trama, um novo desenho de mim mesma, de meus anseios e aspirações. E foi só mudar de casa e começar a de-corá-la que na mesma semana começaram a entrar na minha vida novas pessoas e novas gestalts existenciais, instaurando uma nova dinâmica em meu modo de viver e me relacionar.
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Ao mudar de casa, eu dei a mim mesma um novo ponto de partida, assim como fazemos nos rituais de Ano Novo, ou mesmo nas nossas festas de aniversário, nas quais podemos supor que o bolo representa a vida sendo saboreada, fatia por fatia, nos nutrindo e trazendo doçura ao mesmo tempo... Esses rituais estão enraizados nos antigos rituais de renovação do tempo praticados pelos povos ancestrais, em que havia um retorno à unidade anterior à Criação, os quais baseavam-se na concepção de que a vida em sua plenitude não pode ser restaurada, mas sim recriada através do retorno ao ponto em que surgiu das mãos do Criador, com todo o seu esplendor. Diante disso, os mitos de criação e de origem eram contados e revividos não só nessas cerimônias, mas também antes de qualquer construção: de uma casa, um templo, um objeto.
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Os povos ancestrais consideravam, por analogia, que qualquer criação é uma repetição, em escala reduzida, da criação cósmica do início dos tempos. Podemos pensar na nossa casa como esse “espaço sagrado” em que criamos o nosso mundo, trazendo para dentro dele o que mais valorizamos, e que reflita quem somos e em que direção queremos caminhar e encaminhar a nossa vida. E isso tem um efeito muito poderoso sobre nós, pois nos tira de uma condição passiva diante do nosso destino, colocando-nos numa atitude ativa, posicionando-nos como co-criadores de nossa realidade, pois se podemos considerar que o mundo é a nossa casa, podemos também pensar a nossa casa como um micro-mundo que reflete o nosso mundo interior e interfere no mundo à nossa volta.
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O Ovo do Mundo aparece em vários mitos de criação como a substância básica da qual o universo é formado. Os ovos precisam ser chocados e abrigados num ninho que os contenha e proteja durante sua maturação. O feto necessita do calor e contenção uterina para se transformar numa criança completa. A semente é colocada dentro da terra até que possa irromper como planta e romper o solo em direção ao céu. Para que um processo se realize e se torne visível como forma posta no mundo, precisamos contar com a ação do calor do fogo, da energia amorosa que impulsiona a passagem do não-ser ao ser, do latente ao manifesto, bem como com a receptividade de um continente para o seu desenrolar.
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Héstia é a deusa que personifica o Fogo Sagrado que era colocado no centro dos altares, das casas e das cidades gregas, representando o fogo que nunca pode se apagar, simbolizando o fogo que vem do cento da terra e a lareira do universo. E o centro é o local para onde convergem e de onde irradiam-se as 4 direções (Norte, Sul, Leste, Oeste), ordenando o mundo e o transformando numa unidade significativa. Como calor, promove a afetividade, tecendo relações e criando vínculos. Favorecendo o amadurecimento da vida contida dentro do ovo, expressa a possibilidade de harmonização e integração amorosa de pontos de vista divergentes, congregando essas diferenças em torno de um princípio maior e mais abrangente, ou seja, o que é sagrado para cada um de nós.
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Assim como toda semente necessita de um vaso que a acolha e lhe forneça os nutrientes e condições propícias para a sua germinação, podemos pensar e buscar criar na nossa casa um ambiente que se assemelhe a um “vaso sagrado” (as mulheres de tradição indígena norte-americana consideravam os seus úteros como um vaso sagrado, segundo J. Sams), um espaço acolhedor e repleto do calor necessário para que os nossos potenciais floresçam e preencham a nossa vida com aromas e cores, tornando-a bela, um deleite para os olhos e um ninho para os nossos sonhos de felicidade, amor e auto-realização...
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(Esse texto foi escrito por mim a pedido de uma nova revista que iria ser lançada - Mais Sim - para a seção de decoração, que se chamaria: De-coração. Como o lançamento dessa revista acabou não acontecendo, compartilho esse texto com vocês aqui)

20/01/2009

Em busca do sol!

"Olhamos a estrela como olhamos o fogo.
Sabendo que são uma mesma substância,
apenas diferindo na distância
em que a si mesmos se consomem."
(Mia Couto)
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"A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na prórpia luz consumida..."
(Mário Quintana)
"O que o universo está fazendo
neste exato momento?
Espreitando cada desejo seu."
(Deepak Chopra)

Travessia


"Ó Nossa Mãe Terra, Ó Nosso Pai Céu
Nós somos as suas crianças e com as costas cansadas
Carregamos os seus amados presentes.
Por isso teçam para nós o manto da luminosidade
E que a urdidura seja a branca luz da manhã
Que a linha seja a luz vermelha do entardecer
Que a franja seja o cair da chuva
Que a bainha seja o arco-íris.
Portanto teçam para nós o manto da luminosidade
Para andarmos em equilíbrio lá onde a grama é verde
Ó Nossa Mãe Terra, Ó Nosso Pai Céu."

(prece Tewe)
























18/01/2009

Viagens


"Todas as viagens possuem destinos secretos de que o viajante não se dá conta."
(Martin Buber)




"Devemos estar dispostos a nos livrar da vida que planejamos para podermos ter a vida que está esperando por nós."
(Joseph Campbell)

"Se não conheço os mapas, escolho o imprevisto:
qualquer sinal é um bom presságio."
(Lya Luft)

"A vida só é possível reinventada."
(Cecília Meireles)

13/01/2009

Renascer...



"Estou virando uma menina
tornada mulherinha
com tanta colherinha
de maturidade
ainda assim me sinto parida agora
tenra, maçã nova
nova Eva novo pecado.
Tudo gira e eu renasço menina
vestido curto na alma de dentro...
Deixo no mar os velhos adereços
a velha cristaleira, os velhos vícios
as caducas mágoas.
Nasce a mulher-menina de se amar
com água no ventre e no olhar."

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comece você primeiro passando verniz nos móveis,
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos ...
que lá vou eu de novo na solteirice ...
Sim. Vestirei vermelho, carmim, escarlate ..."

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"O amor vai ser esse cello
de generosos eus
tocados por Deus."

(Elisa Lucinda, trechos de seus poemas, do livro: O Semelhante)


12/01/2009

Adormecer...



"Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso
Contra meu ser arfante:
Um ser profundo e aberto, um ser amado."
(Mario Faustino)

Acordar...


"...Eu que quero do cerne à epiderme,
quero saber a noite que se esconde
em mim
e revelar e vibrar meu dia.
Quero saborear o divino,
e a Vênus que me guia.
(...)
Eu que da vida só quero a vida,
rasgo a veia por um pouco de azul!"
(Rosilda Abuizze)
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"Acordar não é de dentro.
Acordar é ter saída."
(João Cabral de Melo Neto)


11/01/2009

Beijo




RECONSTITUIÇÃO
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"Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.

A bebida era o beijo"
(Elisa Lucinda)
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"Dentro de mim mora um grito.
De noite, ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar
."
(Sylvia Plath)

10/01/2009

“O Coração do Menino e o Menino do Coração”






















"Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe." (Guimarães Rosa)





















Procurando em minhas fotos uma imagem para colocar aqui, percebi entre as fotos tiradas de um coração feito por mim com conchas na areia da praia, nesse final de ano, que em duas delas fotografei os meus pés junto ao coração, e nem sei bem porque (não sabia, até me reencontrar com Mia Couto!), mas tirei os pés juntos em uma delas, e eles abertos em outra... relendo essa história de Mia Couto, tão sensível e bela, percebi que já estava sendo preparado, em meu coração nessa virada de ano, um intenso trabalho de parto.... Compartilho então essa história com vocês, espero que se deliciem com ela!!!
O CORAÇÃO DO MENINO E O MENINO DO CORAÇÃO
"O miúdo nasceu com as acertadas aparências. Só em altura de ensaiar primeiras marchas lhe notaram o defeito, o enviezamento nos pezinhos, cada um não sendo como cada qual. Sobre as pegadas estrábicas a avó vaticinou:
- Este miúdo vai caminhar para dentro dele mesmo.
Depois outra malconveniência se somou: o rapaz engrumava com o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que não se entender humana voz de outra humana pessoa.
A mãe conduziu a criança ao hospital. O doutor mergulhou o ouvido no peito e se ensurdeceu de tanto coração. O menino tinha o pulsar à flor da pele. O médico parecia entusiasmado com o inédito caso.
- Necessitamos que ele fique, para mais exames...
- Nem pensar. Esse menino entrou comigo, há de sair comigo.
- Mas a senhora nem faz idéia... temos que encontrar um nome para a doença dele.
- Como um nome?
- Essa doença: eu tenho que encontrar um nome!
- Mas esse nome, será que vai curar a doença dele?
O médico sorriu. Ai essa gentinha simples, tão exímia em ser pensada pelos outros. E assim, sorriso descaindo no lábio, ficou olhando, mãe e filho se afastarem no corredor. O menino levava em sua mão, descaída uma pétala, uma carta que ele mesmo redigira. Queria ter dado ao doutor esse papelinho que sua inabilidade enchera de letrinha. Com desatenta ternura, a mãe lhe tirou o papel dos dedos e o lançou no latão. A mania desse mirabolhante! Deveria ser outra dessas tantíssimas cartas que o tontinho fingia escrever para sua apaixonada priminha.
- Você ainda se carteia com Marlisa?
O menino negou com veemência. A mãe sacudiu a cabeça. Enfim, quanto ela se esforçara em vão. Valera a pena insistir em ensinamentos em quem nunca aprendera? Também Marlisa, a visada sobrinha, jamais cedera em abrir as cartas. Nem valia a pena espreitar a caligrafia do atarantonto. Uns andaram na lua. No caso, a lua é que andava nele.
Certa vez, o rabiscador daqueles engatafunhos desabou no fundo do tempo. O menino faleceu, em azulidão de pele, todo frio como se nenhuma luz dele tivesse vontade. Os médicos acorreram para levarem o corpo e lhe administrarem a extrema autópsia. Lhe arrancaram o coração, o universátil músculo, enormíssimo como um planeta carnudo. O órgão ficou em vitrina, exposto à ciência e aos noticiários. Os cardiologistas disputavam, em sucessivos colóquios, um apropriado nome para batizar a anormalidade.
Passaram-se os dias, anônimos. Era um fim de tarde, a prima Marlisa, ao arrumar as poeiras da casa, deparou com um monte das inúteis cartas. Sopesou-as antes de as lançar no fogo. Hesitou por um segundinho: o moço sabia abecedar uma simples linha?
Pelo sim, pelo talvez, ela se aventurou a espreitar o primeiro envelope. E ali se sentou em espanto, ruga na fronte, mãos enrolando um demorado cabelo. Ficou horas no assentado degrau. Aquilo não eram cartas, mas versos de uma lindeza que nem cabiam no presente mundo. Marlisa inundou a tristeza, tingiram-se as letras. Quanto mais a prima primava em seguir leitura mais rimava com nenhuma outra mulher, toda ela fora do contexto de existir. A moça se apaixonava postumamente?
Mas ali, arremessada na escada, nem Marlisa imaginava o que, no simultâneo tempo, se passava com o coração do primo que Deus e a ciência guardavam. Pois que, na vitrina gelada do Hospital, mal se rasgou o primeiro envelope, o coração do primo deflagrou em sobressalto. Um oh se estilhaçou nos visitantes. E à medida que Marlisa, mais longe que mil paredes, ia desfolhando versos, o coração mais se desembrulhava, tremelusco-fuscando. Até que, daquele novelo vermelho, se viu desprender um braço, mais adiante um pé e a redondez de um joelho e mais argumentos que faziam valer o fato: aquele coração estava em flagrante serviço de parto! E se confirmava, vinda das entranhas do útero cardíaco, uma total recém-criança.
E quando, finalmente, o parto se desfechou, se viu que o menino nascera igual ao seu progenitor de peito. Fazia medo como um quimicava o outro a papel chapado. Em tudo se assemelhavam, menos no desenho do pé. Os pés do nascido eram divergentes, como quem viesse para procurar, fora de si, gente de outras histórias.” (Mia Couto)

09/01/2009

Conjugando o olhar serpenteante de Tirésias ao fogo criador de Hefesto












Olhando para uma foto tirada no Natal de 2007 (veja acima), curiosamente me deparei com uma imagem no espelho ao fundo, que se assemelha a uma mulher com um vestido branco andando num campo ou numa praia, e pode até ser que tenha alguém vestido de preto ao seu lado... é claro que cada um vê com os seus próprios olhos, e nem todos concordariam que uma mulher se presentificou nesse exato momento, como um reflexo no nespelho, dando notícias de uma realidade paralela (que pode ser apenas a dimensão da imaginação, porque não? Porque não considerar o imaginário como uma das dimensões da realidade?).

Da mesma forma, caminhando pela praia de Ubatuba na noite de lua cheia de 30/12/2008 (mas não estava com minha máquina!), vi na areia molhada do mar o reflexo das estrelas, e isso todos veriam e concordariam que é uma imagem real... mas sabe quantas pessoas olham para o chão à procura de estrelas, e se encantariam diante da magia natural de um céu que se deita na areia da praia, e ainda veriam nisso a possibilidade de uma mensagem cifrada do Universo, prenunciando a realização de sonhos (estrelas podem ser associadas simbolicamente aos nossos sonhos, e o chão à nossa realiadade)? Só os poetas, os artistas, os visionários... apesar de todos poderem enxergar essa imagem, nem todos se disporiam a vê-la para além dos olhos do corpo, com os olhos da alma... E Para as pessoas do tipo psicológico Intuição, que é o meu caso (e que muitas vezes são os visionários e artistas em todas as culturas), o que vemos com esse olho que não o do corpo nos parece, na maior parte das vezes, tão ou mais real do que o que está concretizado diante do nosso olhar... (e ai de nós se Dioniso não vier ao nosso encontro para nos redimir!)




“Mas é de noite, quando a alma vigia
e um olho, que não o do corpo,
espia.
(...)
A humilhação me prostra,
meia-noite, meio da vida a pino,
a cova, a mãe, o grande escuro é Deus
e forceja por nascer da minha carne.”
(Adélia Prado)



Personagem da mitologia grega, Tirésias simultaneamente torna-se cego e ganha o dom da mantéia (adivinhação). Sua cegueira aparece conjugada com um tipo de visão peculiar: “trevosa”, “noturna”, “ímpar”, “unificadora”. A vidência corresponde à visão “de dentro para fora”, “das trevas para a luz”, de acordo com Junito Brandão, pois costumamos associar o ato de ver à capacidade de focalizar objetos, destacando-os de um fundo, para a qual precisamos dos dois olhos abertos e da luz incidindo sobre esses objetos (visão “diurna”, “par”).

A cegueira/vidência de Tirésias tem origem em seu processo iniciático. Ao subir numa montanha e defrontar-se com um casal de cobras copulando, Tirésias mata a cobra fêmea, tornando-se, por isso, mulher, voltando a ser novamente do sexo masculino quando, sete anos mais tarde, encontrando-se numa situação similar, mata a cobra macho. Por ter a experiência dos dois sexos, foi chamado a dar sua opinião diante da questão levantada numa discussão entre Hera e Zeus (se era o homem ou a mulher que tinha mais prazer numa relação sexual). Citando Junito Brandão:

“A visão de Tirésias, etimologicamente , o que tem a capacidade de visão, é a visão de dentro para fora, por isso é mantis. Diga-se de passagem, que, de maneira muito constante, a mântica está relacionada com a serpente, réptil ctônico por excelência e, por isso mesmo, em comunicação com o mundo de baixo, depositário muito antigo da adivinhação.”... “Acrescente-se, por fim, que a cegueira atribuída a numerosos videntes, de Tirésias a Orfeu, ( ... ) está acoplada à esfera da mântica ctônica, trevosa. Vê-se, adivinha-se de dentro ara fora, das trevas para a luz...”

A simbologia das duas cobras copulando pode ser associada à Uroboros, serpente que come a própria cauda, símbolo da totalidade e do Caos primordial (presente em diversas culturas) em que os opostos estão indissoluvelmente unidos:

“A Uróboro também é símbolo da manifestação e da reabsorção cíclica; é a união sexual em si mesma, auto-fecundadora permanente, como o demonstra a cauda enfiada na boca; é transmutação perpétua de morte em vida, pois suas presas injetam veneno no próprio corpo (...) é sem dúvida a mais antiga imago mundi negro-africana, em que, com sua linha sinuosa, associando os contrários, ela encerra os oceanos primordiais no meio dos quais flutua o quadrado da Terra.”

(Chevalier e Gheerbrant)


Segundo a Picologia junguiana, a consciência nasce e se estrutura a partir do Caos inconsciente, através da vivência e elaboração de símbolos. A consciência discrimina e separa os opostos para poder conhecer e entrar em contato com os diversos aspectos da realidade. Por ser focal, ao iluminar determinados aspectos, destacando-os e discriminando-os do todo, ela cria sombra (da mesma forma que acontece quando um foco de luz incide sobre um objeto).

A sombra representa o que não queremos, não aguentamos ou não conseguimos enxergar. Tendemos a projetá-la no outro, que passa a ser depositário dos nossos “outros eus”, lançados para fora de nós e quase sempre rejeitados. Uma das características da sombra, quando projetada, é a de gerar uma forte reação de repulsa, ódio ou abominação diante do que não queremos ver em nós mesmos. Quando a sombra é iluminada e assimilada pela consciência, favorece a criatividade e a equilibração psíquica. A sombra é também o desconhecido, o inconsciente. A consciência é sempre unilateral (só consegue enfocar um aspecto de cada vez) e necessita estabelecer relações significativas com o outro e com o inconsciente para poder ampliar-se.

Tirésias nos propõe inverter a ordem “diurna”, consciente (pois simbolicamente as “trevas” são associadas ao desconhecido e a luz à consciência), e ver o mundo com outros olhos, a partir de um novo ponto de vista. Vendo o mundo de “dentro para fora”, desestabiliza as nossas concepções anteriormente constituídas. Diante dessa proposição, podemos não encontrar, de antemão, referenciais para nos situarmos com relação a essa nova experiência, o que pode gerar sentimentos de angústia e medo.

A visão de Tirésias tinha um caráter peculiar: ele agia, para seus consulentes, como um espelho que refletia a face oculta, velada, de suas personalidades; ele trazia à tona as tramas invisíveis do Espírito, do desconhecido em nós, o que sempre provocava algum tipo de reação. Toda revelação instaura um novo foco ao redor do qual as experiências e expectativas se reorganizam, deflagrando um processo de transformação das relações eu-outro, eu-mundo, a partir de uma ampliação de consciência.

Crono, ao receber a revelação de que um dos seus filhos o destronaria, passou a engoli-los. No entanto, o oráculo só denunciou o caráter devorador, voraz, de qualquer padrão ou princípio ordenador que se pretenda absoluto e perpétuo, não abrangendo com isso a possibilidade e necessidade de reovação periódica. Talvez, e muito provavelmente, Crono, não suportando a visão de sua ambição desmedida pelo poder, engolisse seus filhos para não confrontar-se com os aspectos sombrios de seus desejos.

Muitas vezes agimos como Crono quando nos deparamos com o caráter estranho e inusitado do novo. O novo assusta, não só por ser uma ameaça de destruição ao que já tem nome e forma, não só pelo prenúncio de uma futura mudança, mas por já instaurá-la. O novo, como um recém-nascido, denuncia a nossa própria fragilidade ao lidar com realidades inusitadas. O novo assusta por conjugar morte e vida numa única experiência: o destronamento de Crono é concomitante, e não posterior, à geração e ao nascimento de seus filhos - é o próprio futuro tornado presente e trazendo o desmanchamento do passado que lhe deu origem. Engolir os filhos é como uma tentativa de se apossar do fluxo vital, tentativa vã: estancar, aprisionar, pode trazer pode trazer a ilusão de completude, ao preço de ser capturado pelas próprias ansiedades e medos, e o ser dobrar-se sobre si mesmo como ácido corrosivo.

A cegueira/visão de Tirésias, portanto, se nos apresenta como um símbolo com o qual podemos nos disponibilizar a interagir (ampliando a nossa consciência), ou diante do qual podemos ter uma reação de repulsa, medo, negação ou idealização como forma de fugirmos ao confronto com o que nos causa estranheza.

Na mitologia de vários povos, a cegueira aparece conjugada com a vidência. Aparentemente, a cegueira de Tirésias é fruto de um castigo (imposto por Hera) e sua vidência uma compensação (concedida por Zeus). No entanto, um olhar mais aprofundado revelará que ambas são contingências de um processo iniciático, e, portanto, correspondem à expressão de um momento existencial, a uma determinada qualidade de experiência. Um olhar prospectivo nos mostraria então que existe nesse binômio (cegueira/vidência) uma especificidade do ser a ser apreendida e compreendida, um determinado posicionamento diante de si próprio e do mundo. E como somos limitados por natureza e por nosso aparato psíquico não nos permitir abarcar a totalidade dos fenômenos, necessitamos, enquanto corpo social, que outros nos falem do que vivem e percebem a partir de seus pontos de vista, da mesma forma que nos vemos no e através do olhar do outro.

Precisamos estar em contato com os nossos “outros eus” para que a complexidade e riqueza da nossa existência caleidoscópica e multifacetada possa ser abarcada e contemplada. Muitos iam ao encontro de Tirésias para lhe perguntar o que ele estava vendo lá de onde ele estava, e da mesma forma Tirésias, através dessas pessoas, saía de sua caverna. E esse encontro e essa troca só era possível porque havia familiaridade entre Tirésias e seus consulentes, ambos eram seres humanos e passavam por experiências de vida semelhantes, paradoxalmente.

Nos mitos, encontramos frequentemente o binômio deficiência/eficiência, como em Hefesto, que é um deus coxo. Há duas versões para a origem do defeito físico de Hefesto. Em uma delas, Hera, indignada pelo fato de Zeus ter gerado sozinho a sua filha Atená (deusa da sabedoria, que nasceu a partir da cabeça de Zeus, já mulher feita, com 21 anos), decidiu também gerar por conta própria um filho: Hefesto. Só que Hefesto teria nascido com os pés tortos e, como mancava, Hera, sentindo-se humilhada, o rejeita, lançando-o do Olimpo abaixo. Em outra versão, durante uma discussão entre Zeus e Hera, Hefesto toma o partido da mãe e diante disso Zeus, enfurecido, pegou Hefesto por um de seus pés e o atitou fora do Olimpo, e com o tombo Hefesto teria ficado aleijado e manco.
Em ambas as versões, após ser atirado, ele rola pelo espaço durante todo um dia, e depois é acolhido: na primeira versão, ele cai na olha de Lemnos e é recolhido pelos habitantes da ilha; na segunda, ele cai no mar, sendo recolhido por Tétis e Eurínome, que o acolhem durante 9 anos numa gruta no fundo do mar, onde ele, num processo iniciático, aprendeu a forjar o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se, segundo Junito Brandão, "o mais engenhoso de todos os filhos do céu", forjando os instrumentos de guerra e as jóias dos deuses.

Junito conta que Hefesto chegou a forjar um trono de ouro para ela, mas que na verdade era uma armadilha: ao sentar-se nele, Hera não consegue mais sair de lá, e é Dioniso quem, com o seu vinho, embraga Hefesto e consegue levá-lo de volta ao Olimpo para desatar a mãe desse trono, e com isso Dioniso o ajuda a dissolver a margura decorrente da rejeição e do abandono, tornando-o apto a ter uma esposa - diga-se de passagem que Hefesto foi marido de Afrodite (exigiu isso para libertar Hera de seu trono), a própria deusa do amor e da beleza, nada menos que isso!!!

Hefesto canaliza o seu fogo para a criatividade e a cura. Torna-se também o deus dos nós, o que lhe conferia poderes mágicos, sendo portanto o "xamã do Olimpo", de acordo com Brandão. Em várias mitologias, são os Deuses-Ferreiros ou os ferreiros divinos que forjam o raio e o relâmpago usados pelos deuses. É também um deus-ferreiro que entrega ao Deus-Trovão as armas com que ele vence o monstro – o Dragão aquático ou a serpente, criando e organizando o mundo (segundo Mircea Eliade). A imagem do ferreiro aparece, em diversas culturas, intimamente relacionada a rituais de cura e de iniciação, ao canto e dança e às construções em geral.

Tanto em Tirésias quanto em Hefesto encontramos a conjugação dos opostos deficiência/eficiência, talvez mostrando que nunca se é só uma dessas coisas: o “deficiente” ou o “eficiente”. Além disso, há sempre uma trama de significações abarcando a totalidade dessa vivência, que geralmente vem relacionada a um processo de iniciação, onde se sacrifica determinado aspecto ou modo de existir para a aquisição de novas formas de ser e estar em relação.

No nosso cotidiano, ao elegermos um desses opostos como desejável, aceitável, invejável, e o outro como desprezível, indesejável, inaceitável, criamos uma disparidade que limita e compromete a nossa percepção e possibilidade de compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca, dando margem ao estabelecimento de relações assimétricas, que podem tornar-se opressoras e segregadoras, e à criação e perpetuação de mecanismos de exclusão e abandono do que não desejamos em nós ou para nós, ou do que consideramos como “elemento estranho” à nossa constituição.


“... deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; ... , receei ficar mais tempo e enlouquecer.”

(Machado de Assis)


O diferente, depositário, através desse tipo de atitude, da sombra individual ou coletiva, fica sujeito ao preconceito e à estigmatização, a não ser aceito e reconhecido como parte da humanidade e do corpo social (podendo ser visto como um “câncer” a ser extirpado ou uma “aberração” a ser encoberta, escondida). Isso pode acarretar, para o diferente uma auto-imagem distorcida, dificultando sua auto-aceitação e gerando por vezes sentimentos de vergonha, culpa e de desvalorização.

Ele pode então passar a afastar-se do convívio social e das relações mistas (por temer ser rejeitado), isolando-se e impondo-se a exclusão de “dentro para fora”. Pode aceitar e incorporar o papel de “bode expiatório”, passando a ver-se como o que carrega a falta, o defeito, os “males”, às vezes impondo-se um esforço sobre-humano para destacar-se em algum setor como compensação do que considera como uma “falta”, ou tendo suas conquistas hiper-valorizadas, como se decorressem de um ato heróico (o que é consequência de uma desqualificação e desvalorização de suas capacidades). O diferente pode também colocar-se no lugar da vítima a ser imolada, talvez no desespero de, pelo menos assim, encontrar um lugar, reconhecido pelo outro, para habitar. Outras vezes, pode incorporar o estigma “ao avesso”, agregando-se a guetos em que a união entre os membros pode basear-se e consolidar-se através da oposição àqueles que os estigmatizam.

Em todas essas atitudes, tanto por um lado (da normalidade) quanto por outro (das diferenças), o diferente é visto como um “elemento estranho”, dissonante, sendo desterritorializado, desqualificado e muitas vezes despido de seu caráter humano (“coisificado”), sendo considerado pelo senso comum como aquele que deve ser banido, escondido ou rechaçado.


“Há muitas formas de se tratar anomalias. Pela via negativa, podemos ignorá-las; simplesmente não percebê-las e, se as percebemos, podemos condená-las. Pela via positiva, podemos deliberadamente confrontar a anomalia e procurar um novo padrão de realidade no qual ela tenha lugar."

(Mary Douglas)


Todo símbolo, por ser uma criação conjunta entre a consciência e o inconsciente, contém aspectos conhecidos e desconhecidos. Se não houvesse nos símbolos algo que pudesse ser reconhecido pelo ego, não haveria material com o qual a consciência pudesse se relacionar para integrar em sua esfera os aspectos novos e desconhecidos veiculados por eles. O símbolo, dentro da abordagem junguiana, não é um disfarce ou simulação de uma realidade outra, mas um elemento revolucionário, desestabilizador, na medida em que traz o novo, o que não se enquadra nos moldes já constituídos pelo ego, movendo-o em direção à busca de novos significados e de referenciais mais amplos.

O contato com o símbolo desorganiza o status quo consciente, o que pode ser vivenciado, num primeiro momento, como uma ameaça à integridade psíquica, pois traz à tona a urgência de renovação e resignificação, definindo o eu e o outro, e as contingências que os envolvem, a partir de novas bases.

Podemos pensar que o contato com o diferente, assim como todo confronto com um novo símbolo, faz emergir questões que desestruturam em algum nível os referenciais do ego (que tem uma certa tendência à inércia e ao conservadorismo) podendo despertar reações ambivalentes, como as de ataque e fuga, atração e repulsão. Pois essa é uma vivência que envolve a percepção de novas possibilidades existenciais, o que mobiliza a reformulação de ideais, expandindo os contornos da experiência inter e intra-subjetiva.

Será que ainda precisamos perpetuar rituais como os do bode expiatório para nos desvencilharmos das vivências terroríficas, ameaçadoras ou simplesmente inusitadas desencadeadas pelo espelhamento-projeção de nossa sombra nos aspectos não familiares e rejeitados (ou valorizados negativamente por nossa cultura)? Ou poderemos ser mais criativos e humanos, criando espaços em que o contato com os aspectos sombrios ou desconhecidos do ser possa ser vivido construtivamente, ao invés de defensivamente?

Se a diferença/deficiência gera uma reação emocional tão intensa nos que entram em contato com ela é porque no “estranho” e inusitado existe algo de familiar, de alguma forma as pessoas, em algum nível, se reconhecem nele. Sendo assim, os mecanismos de exclusão do diferente também nos apartam de aspectos relevantes de nossa constituição como pessoa e como humanidade, significando sempre uma perda, um empobrecimento.

Tanto Tirésias quanto Hefesto possuem as marcas de quem foi além de si mesmo. Ambos transcenderam e conjugaram criativamente as polaridades. Mostraram aos homens e aos deuses que não existe trevas sem luz, deficiência sem eficiência. Ambos, Hefesto e Tirésias manejavam uma determinada espécie de fogo: Tirésias transmuta o fogo dos desejos, da libido, em “luz-consciência”, simbolizando uma subida em direção ao significado. Hefesto, cujo nome significa: "o que incendeia a água" (segundo Junito Brandao em seu Dicionário Mítico-etimológico), por outro lado, é um deus que, atirado à terra, trabalha no interior de um vulcão, utilizando o fogo celeste para acelerar os processos da natureza, como um alquimista, dando forma e visibilidade aos atributos divinos e insuflando o sopro-fogo criador na matéria. Ambos transcenderam e conjugaram criativamente as polaridaes.

"Deus coxo e artífice genial, Hefesto carrega em si a contradição entre a perfeição e o erro, inconcebível em uma divindade, mas inerente à natureza dos seres humanos." (Ana Maria Cordeiro e Victor Palomo, no livro: Mitologia Simbólica)


Ambos mostraram aos homens e aos deuses que não existe trevas sem luz (os pintores sabem disso muito bem!), feiura sem a beleza para lhe fazer o contraponto (Hefesto casado com Afrodite!), deficiência sem eficiência, vida sem morte, morte sem renascimento, consciência sem inconsciente, ... e que o mundo fica mais bonito, amplo e iluminado se conseguimos conceber todos esses atributos como igualitariamente participantes e atuantes na constituição do ser.

Podemos recorrer à habilidade artística de Hefesto, ao seu fogo criador, e conjugá-la com a profundidade da visão serpenteante, reveladora e auto-reflexiva de Tirésias para criar espaços de convivência e trocas significativas entre as diferenças, possibilitando o exercício da alteridade. (E o trabalho em Arteterapia e com Oficinas de Cratividade pode e ser um desses espaços!). Pois é só através da disponibilização para a troca significativa com o outro, da abertura para conciliar os opostos e conjugá-los amorosamente (com a ajuda de Eros) que os antagonismos podem ser superados através da criação de paradigmas mais amplos e flexíveis que regulem e permeiem as relações.


“Eros...traduz ainda a complexio oppositorum, a união dos opostos. O amor é a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda a existência a se realizar na ação. É ele que atualiza as virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato só se concretiza mediante o contato com o outro, através de uma série de trocas materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções. Eros busca superar esses antagonismos, assimilando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma unidade.”
(Junito Brandão)

05/01/2009

A “loucura sagrada”: de Dioniso a Jesus Cristo




Esquecer-se da própria origem divina equivale à saída do Paraíso, o que corresponde à perda da “participation mistique” primitiva. Por outro lado, faz parte do processo de criação e expansão da consciência a sua separação e oposição, como faceta complementar, do Self, para a ele religar-se, num novo patamar de consciência, a cada final de ciclo e começo de um novo. A religiosidade consiste e se baseia na busca de um significado maior do que a consciência consegue alcançar com sua visão limitada, que passa pelo plano pessoal e estende-se ao transpessoal, reunindo o ser humano ao Cosmo e conduzindo-o a assumir o seu lugar e o seu papel no plano divino da criação. Isso se contrapõe aos dogmas e ao conceito tradicional de religião (como seita), pois pressupõe liberdade (livre arbítrio), experiência pessoal com relação aos aspectos numinosos do ser (divindade), envolvimento ativo com o próprio processo de expansão da alma e abertura à Vida, além de assumir a responsabilidade sobre o processo de crescimento próprio, que Jung denominou de processo de individuação.
Um dos meios para se vivenciar a religação com a totalidade é através do êxtase, como num orgasmo em que perdemos momentaneamente a noção de nossos contornos e nos lançamos no leito ondulante da energia cósmica, revivendo no plano microcósmico a relação hierogâmica entre o casal sagrado (Pai Céu e Mãe Terra, Yin e Yang, Shiva e Shakti, Úrano e Géia,...), unificando e recompondo aspectos “desgarrados” ou “desagregados” de nossa psique, vivenciando uma pequena morte seguida de um renascimento a partir desse mar cósmico. E Dioniso é, na mitologia grega, o deus do êxtase, da transformação e do entusiasmo - a palavra entusiasmo significa: estar pleno de Deus, e é isso que Dioniso nos propunha e ensinava através dos seus rituais.
Como Zagreu, Dioniso criança é capturado pelos Titãs, sendo morto, esquartejado, cozido e devorado. Da mesma forma, nos rituais dedicados a ele, despedaçavam-se touros, cujo sangue era bebido e as carnes comidas pelos adeptos. É claro que tudo isso não deve ser levado ao pé da letra, mas o mito só pode ser compreendido e apreendido através da perspectiva simbólica, como tão bem observa o mitólogo (de quem tive a honra de ter sido aluna) Junito Brandão, em seu livro: Mitologia Grega:
“O despedaçamento do touro, símbolo da força e da fecundidade, se de um lado representava os sofrimentos de Dioniso, dilacerado pelos Titãs, de outro, o fato de os e as Bacantes lhe beberem o sangue e lhe comerem as carnes, pelo rito da omofagia, inseparável do transe orgiástico, configurava a integração total e a comunhão com o deus. É que os animais, que se devoravam, eram a hierofania, a encarnação do próprio Dioniso. De outro lado, despedaçando animais e devorando-os, os devotos de Dioniso integram-se nele e o recompõem simbolicamente, o que, consoante Jung, configura a conscientização de conteúdos divididos.”
É interessante comparar esses rituais aos da missa católica, em que bebe-se o sangue de Cristo - representado pelo vinho, invenção de Dioniso! - e come-se o seu corpo, simbolizado pela hóstia que é servida aos fiéis. Cristo assim multiplica-se, morre para renascer em cada ser humano, a partir da comunhão do homem com o divino e da descida de Deus no coração do próprio homem. O mesmo mistério com diferentes roupagens...
Dioniso também era um deus agrário, tendo nascido pela segunda vez da coxa de Zeus - símbolo da árvore, do falo da terra, da natureza, da fertilidade e da riqueza que brota na terra (no reino dos vivos) a partir do seu interior (do reino dos mortos). Em certo momento de seus rituais era servida a Hermes uma panspermía - sopa que mistura todas as espécies de sementes. Nesses rituais, o homem se depara com a necessidade de atualizar, acomodar e unificar os aspectos divinos e instintivos que traz em si (como filho nascido do casamento sagrado da Terra com o Céu), transformando-se numa expressão singular dentro do Grande Círculo da existência.
No vinho, criado por Dioniso para favorecer esse estado de "loucura sagrada" (em oposição à loucura que pode abater o homem quando nega a si mesmo, cindindo-se e não abraçando amorosamente a sua sombra, e assim não integrando-a à consciência), em que podemos transcender os limites do ego para abarcar os outros aspectos (inconscientes) de nossa constituição psíquica, a Água, feminina, e o Fogo, masculino, são relacionados e sintetizados, expressando simbolicamente o grande mistério da conjunção dessas substâncias aparentemente incompatíveis (pois o vinho, assim como a experiência amorosa, é como uma água ardente, um sentimento que aquece o corpo e a alma, promovendo a sua fusão...). Nas festas dedicadas a Dioniso, os homens se embriagavam, dançavam, ultrapassavam sua condição humana através do êxtase e uniam-se ao deus, saíam fora de si para serem preenchidos e abrirem espaço para a divindade pelo processo do entusiasmo: “o entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, co-participando da divindade”, o que acarretava uma “explosão de liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distensão, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação.” (Junito Brandão).
Dioniso era um deus que, ao olhar para o homem, acendia-lhe a chama de sua divindade, a qual era vivenciada e incorporada (sem, no entanto, negar-se a própria humanidade e a participação dos instintos na vida psíquica). Esse deus nos chama a olhar no espelho de nossa alma, a trazer à luz e encarar (e encarnar) o melhor e o pior de nós mesmos, para que a tríade animal - homem - deus (corpo – alma – espírito) possa expressar-se de maneira fecunda, e os três níveis: ctônico, terrestre e celeste (instintivo, consciente, arquetípico), transpassados pelo eixo de ligação entre a Terra e o Céu (ego e Self, Natureza e Espírito), possam ser entrelaçados e harmonizados, levando a uma auto-renovação, ao questionamento de pressupostos e crenças (dos preconceitos) e à aquisição de uma maior amplitude existencial. Nesse sentido, Dioniso é, da mesma forma que Jesus Cristo, um deus das sínteses, da alteridade, promovendo o relacionamento igualitário entre as polaridades, confundindo e esfumaçando seus contornos, mostrando sempre o outro lado da moeda, colocando-nos diante dos “outros de nós” para que os opostos possam se fertilizar mutuamente, ocupando seu lugar no desenrolar da Criação.
O interessante de tudo isso, e o que nos mostra (pois o mito é sempre atual, presente como uma realidade transcendente e perene na nossa alma) tanto Dioniso quanto Jesus Cristo, é atentarmos para o fato de que cada mito das diferentes culturas nos ensina mais sobre quem somos, para além de nossas máscaras, e nos ajuda a amplificar a experiência de estarmos vivos, extraindo da vida o melhor dos vinhos: o néctar que nos conecta com a nossa essência ancestral, que nos faz divinamente humanos e humanamente divinos (como tão bem coloca Marcos Ferreira Santos, professor de Mitologia Comparada na FEUSP, em um de seus artigos), e por isso podemos reconhecer que a expressão do divino está presente em cada ser e em cada faceta da criação, transformando o fato de estarmos aqui num motivo, por si só, de uma constante celebração!!!